1
|
A GAROTA DA PONTE
|
Praga, início de maio. O cinza do céu
pesava nos telhados de contos de fadas, e o |
mundo todo assistia. Até satélites tinham
sido direcionados para a ponte Carlos, |
para o caso de os... visitantes...
voltarem. Coisas estranhas já haviam acontecido |
naquela cidade antes, mas não tão estranhas
assim. Pelo menos não desde que |
existiam as câmeras de vídeo para provar o
ocorrido. Ou para explorá-lo. |
— Por favor, me diga que você quer
fazer xixi. |
— O quê? Não! Não, não quero. Nem
adianta pedir. |
— Ah, qual é. Eu mesma faria se pudesse,
mas sendo menina não dá. |
— Eu sei. Tão injusta, essa vida. Mesmo assim
não vou fazer xixi no ex- |
namorado da Karou por você.
|
— O quê? Eu não ia pedir isso.
— Em seu tom mais razoável, Zuzana |
explicou: — Só queria que você fizesse
xixi em um balão para eu atirar nele. |
— Ah. — Mik fingiu pensar no assunto
por cerca de um segundo e meio. — |
Não.
|
Ela bufou.
|
— Que seja. Mas ele bem que
merecia. |
O alvo estava a três metros deles, dando
depoimento a uma equipe de |
reportagem internacional. Não era a
primeira vez, nem mesmo a décima. Zuzana |
tinha perdido a conta. O que tornava
essa entrevista ainda mais irritante era o fato |
de estar sendo gravada bem em frente
ao apartamento de Karou, que já tinha |
recebido atenção suficiente de vários
órgãos de segurança pública sem que o |
endereço fosse devassado no noticiário.
|
Kaz dedicava-se a construir sua fama
como ex-namorado da “garota da ponte”, |
como Karou vinha sendo chamada após o
confronto que atraíra olhares de todo o |
mundo para Praga.
|
— Anjos — sussurrou a repórter, uma
bela jovem que era um misto de |
modelo de revista e assassina, ao típico
estilo das repórteres. — Você sabia? |
Kaz riu. Zuzana, que já imaginava a
reação dele, deu uma risada fingida |
também.
|
— O quê, que anjos existem mesmo?
Ou que minha namorada não gosta |
deles?
|
— Ex-namorada — murmurou Zuzana acidamente.
|
— As duas coisas, acho — disse a repórter,
rindo. |
— Não, nenhuma das duas — admitiu Kaz.
— Mas Karou era toda cheia de |
mistérios.
|
— O quê, por exemplo?
|
— Bom, ela era muito fechada, muito mesmo.
Eu não sei nem de que país |
Karou era, ou o sobrenome dela... se é
que ela tem sobrenome. |
— E isso não o incomodava?
|
— Que nada, era maneiro. Uma garota bonita e
misteriosa? Ela carregava uma |
faca na bota, sabia falar várias línguas e
estava sempre desenhando monstros no... |
— Conte como ela atirou você pela janela!
— gritou Zuzana. |
Kaz tentou ignorá-la, mas a repórter
ouvira. |
— Isso é verdade? Ela machucou você?
|
— Bem, não foi a melhor coisa que já me
aconteceu. — Uma discreta e |
charmosa risada. — Mas eu não me machuquei.
Foi minha culpa, na verdade. Eu a |
assustei. Não foi minha intenção, mas
ela estava um pouco agitada por causa de |
uma briga em que tinha se envolvido.
Estava coberta de sangue e descalça no meio |
da neve.
|
— Que terrível! Ela lhe contou o que
houve? |
— Não! Porque estava ocupada demais
atirando-o pela janela! — gritou |
Zuzana mais uma vez.
|
— Foi uma porta, na verdade — disse
Kaz, fuzilando Zuzana com o olhar. |
Então apontou para uma porta de
vidro atrás dele. — Aquela ali. |
— Esta? Esta porta aqui?
|
A repórter estava maravilhada. Ela
estendeu a mão e tocou a porta como se |
houvesse um grande significado ali, como
se o vidro novo, substituindo o anterior, |
estilhaçado por um ator medíocre sendo
lançado aos ares, fosse algum tipo de |
símbolo importante para o mundo.
|
— Por favor — pediu Zuzana a Mik.
— Ele está bem aqui, embaixo da |
varanda. — A garota tinha as chaves do
apartamento da amiga, o que havia sido |
bastante útil para dar um sumiço nos
cadernos de desenhos de Karou antes que os |
investigadores pudessem colocar as mãos
neles. Ela queria que Zuzana fosse morar |
ali, mas agora, graças a Kaz, o lugar
tinha virado um circo. — Olhe. — Ela |
apontou. — Vai direto na cabeça dele. E
você bebeu litros e litros de chá... |
— Não.
|
A repórter se aproximou de Kaz com
um ar conspiratório. |
— E então, onde ela está agora?
|
— É sério isso? — murmurou Zuzana.
— Como se ele soubesse. Até parece |
que ele só não contou para os outros vinte
e cinco repórteres porque estava |
guardando o furo de reportagem só
para ela. |
Ainda na escada, Kaz deu de ombros.
|
— Todos nós vimos. Ela saiu voando.
— O garoto balançou a cabeça como se |
não pudesse acreditar, e olhou direto para
a câmera. Ele era tão mais bonito do que |
merecia. Kaz fazia Zuzana desejar que
a beleza fosse algo que pudesse ser revogada |
por mau comportamento. — Ela saiu
voando — repetiu ele, fingindo estar |
abismado.
|
Aquelas entrevistas eram uma peça de
teatro para ele: o mesmo espetáculo |
repetidas vezes, com apenas algumas
pequenas improvisações dependendo das |
perguntas. Já estava ficando cansativo.
|
— E você não tem ideia de aonde ela
possa ter ido? |
— Não. Ela vivia sumindo, passava dias
sem aparecer. Nunca dizia aonde ia, |
mas sempre voltava exausta.
|
— Você acha que ela vai voltar desta
vez? |
— Espero que sim. — Outro olhar
emocionado para as câmeras. — Sinto |
saudade dela, sabe?
|
Zuzana gemeu como se estivesse com
dor de barriga. |
— Aaaaaah, faça esse cara calar a
bocaaaaaa! |
Mas Kaz não se calou. Virou para a
repórter e disse: |
— A única coisa boa é que posso
usar essa experiência no meu trabalho. A |
saudade, a dúvida. Isso enriquece muito a
performance. |
Em outras palavras: Chega de Karou, vamos
falar de mim. |
A repórter embarcou na dele.
|
— Então você é ator...
|
Zuzana não aguentava mais.
|
— Vou subir. Você pode segurar
seu chá de bexiga. Eu me viro. |
— Zuze, o que você vai...
— começou Mik, mas ela já estava saindo com |
pressa. Ele a seguiu.
|
E quando, três minutos depois, um
balão cor-de-rosa caiu lá de cima direto na |
cabeça de Kazimir, ele deveria
agradecer a Mik, porque não foi “chá de bexiga” o |
que estourou em cima dele. Foi perfume,
litros de perfume, misturado a |
bicarbonato de sódio para formar uma
pasta grudenta, que se emaranhou em seu |
cabelo e fez seus olhos arderem. A
expressão no rosto de Kaz foi impagável. |
Zuzana soube disso porque, embora a
entrevista não fosse ao vivo, a rede de tevê |
achou que valia a pena transmiti-la.
|
E ela foi ao ar várias e várias vezes.
|
Foi uma vitória, mas vazia, porque,
quando ela tentou ligar para o telefone de |
Karou — pela milionésima vez —, a
chamada caiu direto na caixa postal, e Zuzana |
soube que o aparelho estava desligado.
Sua melhor amiga tinha desaparecido, |
provavelmente ido parar em outro mundo, e
mesmo ver repetidas vezes Kaz sem |
fôlego sob uma coroa de pasta de perfume
e pedaços de balão cor-de-rosa não |
compensava isso.
|
Se fosse xixi, compensaria.
2
CINZAS E ANJOS
(...)
2
CINZAS E ANJOS
O céu do Uzbequistão, aquela noite.
|
O portal era uma fenda no ar.
O vento o cortava nas duas
direções, sibilando
|
como o ar da respiração passando
pelos dentes, e nos limites
tremulantes do portal
|
via-se o céu de um mundo revelando
o do outro. Akiva observava
as estrelas
|
mesclando-se ao longo da fenda,
preparando-se para atravessá-la.
No outro mundo
|
as estrelas de Eretz cintilavam,
visíveis-invisíveis, visíveis-invisíveis,
e ele fez o
|
mesmo. Haveria guardas do
outro lado, e ele não sabia se
deveria revelar sua
|
presença.
|
O que o esperava em seu
mundo?
|
Se seus irmãos o tivessem
denunciado como traidor, os
guardas o prenderiam
|
imediatamente... ou pelo menos
tentariam. Akiva não queria
acreditar que Hazael
|
e Liraz pudessem ter desistido
dele, mas os últimos olhares
dos dois ainda estavam
|
bem vivos em sua memória:
a fúria de Liraz por sua
traição, a revolta silenciosa de
|
Hazael.
|
Ele não podia arriscar ser pego.
Vivia assombrado por outro
último olhar, mais
|
penetrante e mais recente
que os deles.
|
Karou.
|
Dois dias antes ela o havia
deixado no Marrocos, e o
olhar que lhe lançara antes
|
de partir fora tão terrível que
ele quase preferia que ela o
tivesse matado. E a
|
tristeza dela nem tinha sido
o pior. O pior fora sua
esperança, a inapropriada e
|
rebelde esperança de que o
que ele lhe dissera não fosse
verdade, quando ele sabia
|
com a mais absoluta e
realista certeza que era.
|
Os quimeras tinham sido destruídos.
A família dela estava morta.
|
Por causa dele.
|
A infelicidade de Akiva o
consumia. Ia lhe corroendo aos
poucos, e ele sentia a
|
dor a todo instante, como se
dentes o dilacerassem — a
tristeza que o devorava por
|
dentro, a verdade sombria do
que tinha feito, atormentando-o
como um pesadelo
|
do qual não conseguia acordar.
Naquele momento, Karou podia
estar rodeada pelas
|
cinzas de seu povo, sozinha nas
ruínas escuras de Loramendi...
ou pior, podia estar
|
com aquela coisa, Razgut, que a
levara de volta para Eretz. E
o que aconteceria
|
com ela?
|
Akiva devia ter ido atrás deles.
Karou não entendia. O mundo
para o qual ela
|
estava voltando não era o mesmo de
suas lembranças. Ela não
encontraria nenhuma
|
ajuda ou conforto lá — somente
destruição e anjos. Patrulhas de
serafins eram
|
frequentes nas antigas terras livres
agora, e os poucos quimeras restantes
eram
|
acorrentados e levados para o
norte sob o chicote dos traficantes
de escravos. Eles a
|
veriam — quem não a veria, com seu
cabelo lápis-lazúli, a deslizar sem
asas
|
facilmente pelo ar? Ela seria morta ou
capturada.
|
Akiva precisava encontrá-la antes dos
outros.
|
Razgut dissera a ela que conhecia
um portal, e, considerando o que ele era —
|
um dos Decaídos —, provavelmente
conhecia mesmo. Akiva havia tentado
|
localizá-los, mas sem sucesso, de
forma que no final das contas não
tivera opção a
|
não ser voar em direção ao portal que
ele próprio tinha redescoberto: aquele
diante
|
do qual estava agora. Qualquer coisa
podia ter acontecido durante o tempo
que ele
|
tinha perdido sobrevoando oceanos e
montanhas.
|
Ele decidiu ficar invisível. O dízimo era
fácil. A magia não vinha de graça;
|
exigia como pagamento a dor, que
o antigo ferimento de Akiva supria em
|
abundância. Seria muito simples trocá-la
pela quantidade de magia necessária para
|
apagá-lo do ar.
|
Então ele foi para casa.
|
A mudança na paisagem era sutil. As
montanhas dali se pareciam muito
com as
|
montanhas de lá, embora no mundo
humano as luzes de Samarcanda brilhassem
à
|
distância. Ali não havia nenhuma cidade, apenas
uma torre de vigia no alto de uma
|
das montanhas, com dois guardas serafins
andando de um lado para o outro atrás do
|
parapeito, e, no céu, a melhor forma de reconhecer
Eretz: duas luas, uma brilhante
|
e a outra um mero fantasma, quase invisível.
|
Nitid, a lua brilhante, era a deusa de quase tudo
para os quimeras — menos dos
|
assassinos e dos amantes secretos. Esses
eram devotos de Ellai.
|
Ellai. Akiva se retesou ao vê-la. Ela bem
podia ter-lhe sussurrado, Conheço
|
você, anjo; afinal, ele não tinha vivido
um mês em seu templo, bebendo de sua
|
fonte sagrada, e até sangrado lá dentro
quando o Lobo Branco quase o
matara?
|
A deusa dos assassinos provou meu
sangue, pensou ele. Será que tinha
gostado,
|
será que queria mais?
|
Ajude-me a encontrar Karou em segurança,
e você terá até a última gota dele.
|
Ele voou para o sudoeste, o medo o
puxando como um anzol, e ainda
mais
|
rápido à medida que o sol subia
no céu e o medo se transformava
no pânico de
|
chegar tarde demais. Tarde demais e... o
quê? Encontrá-la morta? Ele revivia a
|
todo momento o instante da execução
de Madrigal: o baque surdo de sua
cabeça
|
caindo e o retinir dos chifres batendo
no chão e a impedindo de rolar
para longe do
|
cadafalso. E não era mais Madrigal,
mas Karou, a protagonizar aquelas
lembranças,
|
a mesma alma em um corpo diferente
e sem chifres para impedir que
sua cabeça
|
rolasse, apenas a improvável seda
azul de seu cabelo. E embora seus
olhos fossem
|
agora negros em vez de castanhos, ficariam
embotados da mesma forma, se
|
revestiriam novamente do olhar pétreo
dos mortos, e seria seu fim.
De novo. De
|
novo, e dessa vez para sempre,
porque não havia mais Brimstone para
ressuscitá-la.
|
Dali em diante, morte significava
morte.
|
Se ele não chegasse lá. Se não a
encontrasse.
|
E enfim surgiram à sua frente:
as ruínas que um dia foram
Loramendi, a cidade-
|
fortaleza dos quimeras. Torres tombadas,
ameias destruídas, ossos carbonizados,
|
toda a cidade um campo de cinzas. Até as
barras de ferro que um dia se arqueavam
|
sobre o lugar tinham sido arrancadas,
como se pelas mãos dos deuses.
|
Akiva sentia como se estivesse sendo
sufocado pelo próprio coração.
|
Sobrevoou as ruínas, procurando
um vislumbre de azul naquela vastidão
de cinza e
|
preto — o cenário de sua terrível vitória
—, mas não encontrou nada.
|
Karou não estava lá.
|
Ele procurou durante todo aquele dia
e também no seguinte, por Loramendi e
|
além, perguntando-se furiosamente aonde
ela poderia ter ido e tentando não passar
|
a se perguntar o que podia ter
acontecido com ela. Mas as
possibilidades ficavam
|
mais sombrias à medida que as
horas passavam, e seus medos se
transformavam em
|
pesadelos inspirados em todas as coisas
terríveis que ele já tinha visto e feito.
|
Imagens assaltavam sua mente.
Várias vezes ele levou as mãos aos
olhos para afastá-
|
las. Ela não. Karou tinha que estar
viva.
|
Akiva simplesmente não conseguia
sequer pensar na
alternativa.
|
cade o resto ?
ResponderExcluir